O vazamento de informações pessoais de 50 milhões de usuários do Facebook para uso na campanha presidencial de Donald Trump (por meio dos serviços de mineração de dados da consultoria Cambridge Analytica) é algo que não chega a surpreender.
Afinal de contas, estamos todos vulneráveis à combinação entre quatro forças:
- o botão “Li e concordo com os termos de uso e a política de privacidade” projetado para sumir da interface digital com um clique;
- o longo e incompreensível contrato escrito em juridiquês que acompanha o botão e ninguém lê;
- a lógica utilitarista que nos faz trocar dados pessoais por inclusão digital;
- a ação de empresas e pessoas inescrupulosas.
As quatro forças são evidentemente negativas, mas a linguagem incompreensível dos contratos é a que mais me mobiliza. São imensos os estragos que costuma causar à cidadania e ao consumo.
A maioria de nós se acostumou e nem pensa muito no problema. Mesmo lendo e relendo, não se entende nada mesmo: para que perder tempo com isso? Faz parte do mecanismo do sistema.
No Google, no caixa automático ou em qualquer interface digital, a gente diz que leu e concorda para poder acessar o que efetivamente interessa – email grátis, dinheiro na conta ou o apartamento das férias.
Agindo assim, colocamos em prática o conceito de utilitarismo do filósofo Jeremy Bentham: “O mais elevado objetivo da moral é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor”.
Mas, claro, o contrato que ninguém lê embute inúmeras condições contrárias aos nossos próprios interesses. Inebriados com o prazer digital imediato, ignoramos o risco da dor duradoura.
No caso das redes sociais, a hegemonia do prazer pode ser efêmera, como bem provou a mineração inescrupulosa da Cambridge Analytics.
Impulsionada por manipulação de dados pessoais, a eleição de Donald Trump causou estragos à cidadania americana – e global – ainda difíceis de mensurar.
‘Li e concordo’: documentário e ensaio
Em 2013, o cineasta americano Cullen Holback mostrava que a maximização da felicidade tem mesmo fôlego curto em serviços digitais.
O documentário Sujeito a termos e condições (Terms and conditions may apply) investiga as consequências que os cidadãos enfrentam ao firmar contratos com grandes corporações sem ler.
A temática da incompreensibilidade da linguagem em contratos de serviços digitais me inspirou a escrever o ensaio acadêmico Aceita-me ou te excluo.
Nele, eu relaciono o filme de Hullback às ideias de Jeremy Bentham, Zygmunt Bauman, Michael Sandel e Benjamin Barber – autores que estava lendo àquela altura da especialização em Cultura do Consumo na PUC-Rio.
Confira um trecho do ensaio que produzi em 2016:
Se, como argumenta Bauman, “levar a vida social eletronicamente mediada não é mais uma opção, mas uma necessidade do tipo ‘pegar ou largar’ ”, a condição de fornecimento de dados pessoais possivelmente pode ser encarada como mera formalidade de entrada no ambiente de socialização das plataformas on-line, hoje obrigatório. Compra-se acesso, gratuito ou não, com a moeda dos dados particulares. As implicações jurídicas deste acordo ocupariam posição secundária quando comparadas à importância de realizar um desejo que há muito aguardava ser satisfeito.
Clique aqui para ler, na íntegra, meu ensaio acadêmico “Aceita-me ou te excluo”.
Quer que desenhe ou serve um infográfico?
O pesquisador libanês Hamza Harkous é outro inconformado com a incompreensibilidade das informações em contratos de serviços digitais e o estrago que costuma causar à cidadania e ao consumo.
Ligado à Escola Politécnica de Lausanne, na Suíça, ele desenvolve projetos que relacionam privacidade, aprendizado de máquina (machine learning) e interação humano-computador.
O site Polisis é fruto das pesquisas de Harkous. Lá, os termos de privacidade de milhares de serviços digitais são transformados em infográficos de fácil compreensão visual.
Pode-se visualizar de forma simples os termos incompreensíveis de contratos. O menu de navegação inclui Informações coletadas, Uso por terceiros, Questões de segurança, Retenção de dados e Direito de edição, entre outros aspectos.
É de cair o queixo. E de retomar a cidadania surrupiada pelo maldito quadradinho ‘Li e concordo’.