A Academia Brasileira de Letras (ABL) convidou a pessoa certa para falar sobre juridiquês.
O político gaúcho Nelson Jobim, que, entre outros cargos em uma longa carreira no setor público, foi presidente do Supremo Tribunal Federal.
Jobim é um conhecido crítico do linguajar jurídico enrolado e um ferrenho defensor da clareza de expressão.
No fim da tarde de hoje, ele teve quarenta minutos para abordar o tema “O juridiquês como legado do barroquismo brasileiro”. E o fez com competência.
Nelson Jobim e o jornalista Merval Pereira no teatro da Academia Brasileira de Letras, no Rio
Sua conferência foi inteligente, polida e mordaz. E, melhor de tudo, repleta de exemplos anedóticos.
A palestra começou apresentando o momento histórico que propiciou o surgimento do linguajar floreado da justiça, durante o período barroco – daí o “barroquismo” do título.
“O estilo artístico barroco surgiu em reação ao Renascimento, que via o homem como elemento central do mundo”, afirmou Jobim.
“Como o barroco enfatizava Deus, a arte do Onipotente não poderia se dar em bases singelas”, explicou. “Daí o uso radical da linguagem mais culta e o excesso de erudição: o objetivo é transmitir potência no discurso”.
Ele contextualizou: “A ornamentação linguística sinalizaria um jurista mais preparado, pois quem se afasta se torna grande e incompreenssível”.
Nelson Jobim acredita que o formalismo da linguagem jurídica já virou piada. “Mas, ainda assim, insistimos em usar o juridiquês no Brasil”.
E enumerou exemplos estapafúrdios que abundam em textos jurídicos até hoje.
“Petição inicial transforma-se em ‘peça dilucular’. Denúncia vira ‘exordial increpatória’. A CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) passa a ser chamada de ‘digesto obreiro’. Chega a ser anedótico”, disse, acrescentando: “O juridiquês virou uma linguagem de comadre”.
Nelson Jobim resumiu o problema com uma frase digna da hashtag #prontofalei:
Comunicação sem clareza é uma forma eficaz de esconder ignorância no assunto sobre o qual se fala.
Antes de encerrar a palestra lendo um trecho do conto “Teoria do medalhão”, de Machado de Assis – patrono da ABL -, disparou a frase mais simbólica do fim de tarde.
Falar difícil é fácil. O difícil é falar fácil.
Infelizmente a conferência, que foi mediada pelo jornalista Merval Pereira, não abriu para perguntas da plateia.
Gostaria muito de ter perguntado a Nelson Jobim sua opinião sobre o aspecto trágico do juridiquês-piada.
Refiro-me à tragédia línguística cotidiana que faz milhões de pessoas perderem tempo lendo e relendo documentos incompreensíveis, prejudica a produtividade do país e acentua a desigualdade social.
No fim, cumprimentei o palestrante, ofereci-lhe um exemplar autografado do livro “Clareza em textos de e-gov, uma questão de cidadania” e pedi para tirarmos uma selfie.